ROMANOS 9 - VASOS DE HONRA, VASOS DE DESONRA E A DOUTRINA DA ELEIÇÃO

Por Pr. Rafael Gomes

O texto a seguir refere-se ao sermão ministrado à Igreja Batista Central de Campinho, RJ, na noite de 31/05/2020, seguindo a série de mensagens expositivas em Romanos, que temos ministrado atualmente. Nele eu venho abordar de forma expositiva o texto de Romanos 9.1-24, tratando aqui da Doutrina da Eleição, abordada pelo apóstolo Paulo em sua epístola. Tal assunto é de relevante importância para a Igreja, tendo em vista o entendimento correto e sadio acerca da atuação soberana de Deus na aplicação de Sua infinita misericórdia e compaixão sobre o ser humano pecador.
Existem muitas distorções no que tange essa doutrina, algumas explícitas e outras mais veladas. Ambos os tipos, no entanto, trazem dificuldades ao cristão, e ferem o nosso relacionamento com o Senhor, conduzindo-nos às vertentes mais humanistas e seculares do entendimento acerca da misericórdia de Deus, da graça salvífica e das bênçãos advindas de Cristo.
Sigamos ao texto.

TEXTO BASE: ROMANOS 9.1-24

Chegamos ao capítulo em que o apóstolo fará a exposição da Doutrina da Eleição, ou seja, os meios pelos quais Deus elege soberanamente aqueles que serão salvos, bem como derrama justa ira sobre aqueles não eleitos.

É importante lembrar que a Carta aos Romanos é uma epístola produzida por Paulo e endereçada a uma igreja que não o conhecia. E ele toma essa iniciativa pois tinha como objetivo pregar o evangelho na Espanha, e para isso, contava com o apoio dos cristãos romanos. No entanto, ao dirigir-se à igreja de Roma, era necessário que o apóstolo apresentasse suas prerrogativas e doutrinas, mas para isso ele teria que desbancar aqueles que se opunham aos seus ensinos apostólicos, a saber, os judeus, e nesse caso aqueles que viviam em Roma, bem como, judeus convertidos ao cristianismo, mas que ainda guardavam as tradições judaicas como acessórias à graça de Cristo (os judaizantes).

O apóstolo inicia esse capítulo dando um parecer verdadeiro, tendo como principal testemunha o Espírito Santo, a respeito do seu amor por seu povo, e de como ele lamenta o fato dos seus compatriotas estarem endurecidos quanto ao evangelho da graça (Romanos 9.1-3).
Sobre esse trecho, R.C. Sproul argumenta o seguinte: Ele quer se certificar que a comunidade judaica em Roma leia a sua epístola por meio de suas lágrimas [1]. E ainda faz uma comparação entre a dor (dolor - latim) de Paulo e a dor de Cristo, a chegar a Jerusalém e considerar o endurecimento do povo: Jerusalém, Jerusalém, que matas os profetas, e apedrejas os que te são enviados! quantas vezes quis eu ajuntar os teus filhos, como a galinha ajunta os seus pintos debaixo das asas, e tu não quiseste! (Mateus 23:37) [2].
Cabe aqui um breve parêntese sobre essa atitude do apóstolo Paulo e a nossa atitude como cristãos. Paulo se condoía do estado em que seu povo encontrava-se mediante Cristo. Creio que falta-nos empatia com o nosso povo. Oramos pouco pelas almas que vão se perdendo, e parecemos estar conformados à ideia de que pessoas estão morrendo todos os dias sem Cristo.
Voltando ao texto, nos v. 4 e 5, Paulo se dedica a destacar bênçãos dadas aos judeus, e que deveriam servir como pavimento à fé daquele povo para encontrarem-se com Cristo como o Messias esperado, sendo Ele o Senhor e Salvador. Ele elenca 9 destaques quanto aos seus parentes segundo a carne (v.3), a saber: israelitas, ou seja, filhos de Abraão; adoção de filhos, afinal, foi o povo escolhido dentre todos os outros povos; a glória, sendo aqui o povo pelo qual Deus escolheu demonstrar Sua glória às nações; as alianças, sendo o povo ao qual foram dadas as alianças em Abraão, Isaque, Jacó, Moisés, Davi; a lei, dada ao povo escolhido para viver em retidão conforme a vontade de Deus; o culto, tendo mostrado àquele povo como deveria ser a adoração ao Deus Vivo; as promessas, todas elas feitas aos pais e renovadas recorrentemente a cada novo conserto realizado pelo Senhor com o Seu povo; os pais, pelos quais vieram a se tornar a nação eleita dentre todas as demais; e Cristo segundo a carne, homem perfeito, geração de Davi, segundo Adão, pelo qual veio a libertação da condenação do pecado, e pelo qual veio o cumprimento de toda a Lei divina, concretizando nEle todas as promessas e alianças.

No entanto, ao depararem-se com o testemunho de Paulo, muitos opositores poderiam questionar que diante de tudo o que fora exposto, a Palavra da Promessa teria falhado, visto que aquilo que outrora fora prometido a Israel, agora havia sido dado aos gentios. E nesse ponto é que o apóstolo, sabiamente conduzido pelo Espírito Santo, argumenta “Não que a Palavra de Deus tenha falhado, porque nem todos que são de Israel são israelitas”(v.6); afinal, as promessas de Deus foram dadas ao remanescente fiel (v.27), que nunca deixou de existir em meio à multidão do povo. Logo, “não são os filhos da carne que são filhos de Deus, mas os filhos da promessa são contados como descendência” (v.8). Ismael foi o filho segundo a carne de Abraão, mas Isaque foi o filho da promessa, sobre o qual recaiu a aliança de Deus com Abraão.
Quanto a essa questão, cabe uma observação importante sobre a Igreja e os crentes. Assim como Ismael foi fruto da iniciativa do homem em relação a uma promessa de Deus, muitos estão querendo tomar a iniciativa de produzir filhos de Deus no meio da Igreja de Cristo; acreditam que tão somente pelo fato da pessoa estar no meio da comunhão do povo de Deus, já é parte do povo de Deus, o que não é verdade. Não somos nós quem produzimos filhos de Deus, mas o Espírito Santo.
Diante disso, tendo estabelecido um princípio importantíssimo aqui, Paulo segue sua explanação agora mostrando que a promessa não fora realizada nos filhos segundo a carne, em contraste com o que pensavam os judeus, mas nos filhos segundo o Espírito. E ele vai continuar essa argumentação do verso 9 ao verso 13, onde nos recorda o registro das Escrituras: Como está escrito: amei a Jacó, e odiei a Esaú (v.13; cf. Malaquias 1.2,3).

Aqui é interessante perceber como essa questão é trabalhada a partir da pergunta: Que diremos pois? que há injustiça da parte de Deus? (v.14). O apóstolo faz questão de responder aos seus opositores um sonoro “De maneira nenhuma!” (v.14), e continua, lembrando-nos do que fora dito a Moisés: Compadecer-me-ei de quem me compadecer, e terei misericórdia de quem eu tiver misericórdia (v.15; cf. Êxodo 33.19).

Atingidos pela perplexidade...

Agora o apóstolo chega a um ponto extremamente difícil em sua argumentação, e que nos deixa em certo nível espantados; pois aqui nós temos o verdadeiro testemunho da gerência de Deus sobre a Sua misericórdia e sobre a eleição que Ele realiza. Aqui nós somos atingidos de perplexidade, pois nossas concepções errôneas de que o homem é “o ponto fraco de Deus”, como afirmam alguns, de púlpito, hoje em dia (levianamente), caem por terra.

Talvez o que nos deixe mais espantados nesse ponto é sabermos que não temos o menor controle sobre esses fatos. As Escrituras são claríssimas ao dizerem que “isto não depende do que quer, nem do que corre, mas de Deus, que se compadece” (v.16).

É bem possível que nossas dificuldades com o texto em questão se deem no campo da aceitação quanto à natureza divina, pois somos confrontados com a soberania de Deus perante às suas criaturas, e nos assusta o fato de sabermos que agradar a Deus não envolve somente o nosso querer, mas a compaixão dEle dirigida a nós, manifestando em nós tanto o querer como o efetuar, segundo a Sua boa vontade (Filipenses 2:13).

E mais do que isso. A nossa rebeldia contra o Senhor se estabelece nesse campo também, pois achamos que o padrão de justiça de Deus deve estar vinculado ao nosso padrão. Esquecemos de que a nossa é assemelhada a trapos de imundícia (Isaías 64.6).

Nos assusta o fato de sermos confrontados com a realidade de um Deus Soberano, que não está sujeito à nossa vontade, mas que nos sujeita à Sua vontade. Possivelmente isso ocorra pelo fato de que nos acostumamos com a ideia de um deus (com “d” minúsculo, pois não é o verdadeiro Deus) que se dobra diante do Homem Todo-Poderoso, que quer fazer valer a sua própria lei e senso de justiça perante a divindade.

Mas ao continuarmos a leitura, somos confrontados novamente nos versos 17 e 18: Porque diz a Escritura a Faraó: Para isto mesmo te levantei; para em ti mostrar o meu poder, e para que o meu nome seja anunciado em toda a terra. Logo, pois, compadece-se de quem quer, e endurece a quem quer.

É por essa razão que digo que o Humanismo (doutrina filosófica que coloca o homem no centro da existência e como alvo de todas as atenções da divindade, no campo religioso) é uma terrível invenção de Satanás para deturpar o entendimento da criatura quanto ao seu Criador. Pois ao sermos envenenados com esse pensamento, acabamos por tentar colocar Deus dentro de uma caixa, e nos comportamos como Jonas, irando-nos quando contrariados (Jonas 4.2), esquecendo-nos de que ao Senhor pertence a Salvação (Jonas 2.9) e que isto não depende do que quer, nem do que corre, mas de Deus, que se compadece (v.16).

Dir-me-ás então: Por que se queixa ele ainda? Porquanto, quem tem resistido à sua vontade? (Romanos 9:19)

Sim, essa é a pergunta daquele que se opõe à Soberania divina. Daquele que não enxerga pelos olhos da fé, mas da carne, e acredita que cumprindo os votos da Lei, ou das boas obras, tão somente, ganhará o favor do Rei. Por que Deus ainda se queixa daqueles que não vivem conforme Sua vontade, daqueles que resistem a Ele? Já que é Ele quem endurece a quem quer, e demonstra misericórdia a quem quer, por que ainda Se queixa?

E aqui temos um dos profundos enigmas bíblicos, que mescla a Soberania Divina com a responsabilidade humana. E a resposta de Paulo aqui torna-se ríspida contra o seu imaginário questionador: Porventura a coisa formada dirá ao que a formou: Por que me fizeste assim? (v.20).

De uma forma maravilhosamente misteriosa Deus é soberano e o homem é responsável por sua forma pecaminosa de viver. Sendo assim, Deus em Sua soberana vontade escolhe eleger dentre pecadores os vasos de honra, para que também desse a conhecer as riquezas da sua glória nos vasos de misericórdia, que para glória já dantes preparou (v.23), bem como querendo mostrar a sua ira, e dar a conhecer o seu poder, suportou com muita paciência os vasos da ira, preparados para a perdição (v.22); de modo que esses que foram preparados para a perdição, foram preparados sob seus próprios pecados e impiedade, de modo que são responsáveis pela sua resistência a Deus. Deus os condena sem que seja moralmente responsável por sua impiedade e pecaminosidade, sendo essa condenação perfeitamente justa.

Os vasos de misericórdia...

Mas é sobre esses vasos de misericórdia que gostaria de me ater nesta conclusão, tamanha a importância de compreendermos a beleza de sermos achados aqui: Os quais somos nós, a quem também dantes chamou [...] (v.24).
Pois fomos separados para que o Senhor demonstrasse Seu eterno poder e glória em nossas vidas. Veja aqui a importância de uma vida para o louvor da glória de Deus.

Enquanto existem pessoas achando que são filhos de Deus tão somente por “pertencerem a Israel”, achando que por serem parte de um rol de membros são filhos da promessa, o Senhor nos diz que o poder de nos fazer filhos Seus não pertence a nós, mas a Ele, tão somente. Logo, se nos decidimos por Cristo e recebemos a redenção por Sua obra, não é porque fomos espertos o suficiente, ou sábios o suficiente, mas porque Ele quis dar a conhecer as riquezas da sua glória nos vasos de misericórdia (v.23).

Diante disso temos ainda muito mais motivos para nos alegrarmos em Cristo Jesus, pois de fato nada fizemos para merecermos tamanho amor. E não somente isso, mas Ele também nos capacita agora para levarmos aos outros o conhecimento dessa misericórdia e graça. Não é à toa a figura do vaso usada por Paulo nesse texto. Somos vasos cheios das riquezas da glória desse Deus maravilhoso. Vasos que estão sendo limpos pelo Espírito Santo (santificação), e que ainda têm um pouco de sujeira carnal mesclada com riquezas espirituais, mas que têm a missão de levar dentro de si a glória de Deus, que é a presença do próprio Espírito Santo.

Ele nos ajuda nesse processo de limpeza, de retirada dessas sujeiras que estão envoltas em riquezas. Mas compreenda esse mistério: um vaso que guarda uma riqueza tão imensa, ainda que tenha alguma sujeira dentro de si, mais valerá a riqueza que carrega. É isso que as pessoas precisam conhecer, a riqueza da glória de Deus, e não a sujeira da carne humana. 
E aqui faço um breve parêntese: me entristece ver cristãos falando mal da Igreja do Senhor para pessoas ímpias, pessoas que não conhecem nada do povo de Deus, e que deveriam estar conhecendo das riquezas guardadas no meio desse povo, e não das debilidades. Pessoas que agem assim preferem dar destaques às debilidades do povo de Deus, a falar das maravilhosas obras operadas pelo Espírito Santo. Isso é lamentável.
Por isso meu amado irmão, busquemos viver tão somente para a glória de Deus, para que as pessoas vejam em nós a maravilhosa misericórdia do Senhor que nos alcançou, e que está ofertada aos demais que se arrependerem de seus maus caminhos, e vierem a Cristo Jesus.

Por fim lembremos que: Temos, porém, esse tesouro em vasos de barro, para demonstrar que este poder que a tudo excede provém de Deus e não de nós mesmos. (2 Coríntios 4.7)

Que o Senhor nos ajude!

==================
Referências:
[1] Estudos Bíblicos Expositivos em Romanos - RC Sproul, Ed. Cultura Cristã, 1ª Edição 2011, pg. 280.
[2] Estudos Bíblicos Expositivos em Romanos - RC Sproul, Ed. Cultura Cristã, 1ª Edição 2011, pg. 280 e 281.