CONFESSIONALIDADE BATISTA - SANTA ELEIÇÃO E REPROVAÇÃO

Por Rafael Gomes

Texto Base: Romanos 3:19-23

Introdução

Este é o primeiro texto, de uma breve série de estudos confessionais, que serão trabalhados aqui no Atalaia de Sião. Essa série tem a intenção de transmitir a visão Batista Particular aos leitores, utilizando documentos históricos que fazem parte da nossa formação teológica como cristãos reformados.

A partir disso, é nosso intuito desenvolvermos os cinco principais pontos das doutrinas da graça, iniciando pelo primeiro tópico abordado nos Cânones de Dort, a saber, a Doutrina da Eleição e Reprovação.

Por que é importante falarmos a respeito dos Cânones de Dort?

O documento que analisaremos ao longo desses estudos foi elaborado em resposta a um grupo conhecido como Remonstrantes. Esse grupo colocava em cheque diversas doutrinas fundamentais da teologia reformada (aquela oriunda da Reforma Protestante). Devido aos posicionamentos contraditórios, basicamente em matéria de soteriologia (doutrina da salvação), os remonstrantes foram considerados hereges pelo sínodo de Dort. Eles advogavam, dentre suas proposições, ideias como a possibilidade do crente decair da graça (perda da salvação), a eleição condicionada ao esforço humano, a coparticipação do crente na obra de salvação (sinergismo) e, em certa medida, a sujeição da soberania divina ao livre-arbítrio humano.

Dessa forma, os Cânones de Dort constituem um documento histórico muito relevante em matéria de confissão de fé. Além de outros materiais teológicos, os Cânones serviram como base fundamental para o desenvolvimento de boa parte da Teologia Batista Pactual. Em breve, permitindo Deus, teremos a possibilidade de aprofundarmos nosso conhecimento na boa Teologia Batista Pactual. Mas, neste primeiro momento, dedicaremos tempo e esforço para conhecermos nossas raízes doutrinárias.

Ponto de Partida

Iniciaremos nossos estudos partindo da análise da Divina Eleição e Reprovação, conforme os Cânones de Dort sistematizaram. É importante ressaltarmos que iniciaremos por aqui pois é deste tema que se originam todos os demais, pois o decreto divino acerca da eleição e reprovação não surge no momento da queda, antes, é estabelecido nos tempos eternos, antes da fundação do mundo, conforme nos aponta a Palavra em Efésios. Leiamos o que diz o texto de Efésios 1:3-8:

“Bendito o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, o qual nos abençoou com todas as bênçãos espirituais nos lugares celestiais em Cristo; Como também nos elegeu nele antes da fundação do mundo, para que fôssemos santos e irrepreensíveis diante dele em amor; E nos predestinou para filhos de adoção por Jesus Cristo, para si mesmo, segundo o beneplácito de sua vontade, para louvor da glória de sua graça, pela qual nos fez agradáveis a si no Amado, em quem temos a redenção pelo seu sangue, a remissão das ofensas, segundo as riquezas da sua graça, que ele fez abundar para conosco em toda a sabedoria e prudência”.

Outro ponto importante a ser considerado é que, à luz do que lemos no texto básico deste estudo, ninguém é digno da salvação. Não há um ser humano apto a herdar o céu de glória do Senhor, pois todos pecaram e igualmente se fizeram inaceitáveis diante do Santíssimo Deus. Sendo assim, quando Deus usa de Sua graça para com os homens, enviando Seu Filho Amado para a salvação dos creem (os eleitos de Deus), Ele não se torna injusto ao condenar os pecadores incrédulos. 

Ao contrário do que alguns argumentam, a eleição de pecadores para a salvação é a mais clara demonstração de graça e misericórdia da parte de Deus. Esta compaixão do Senhor gera alegria indizível no coração dos crentes, mas faz ranger os dentes aos descrentes, dado o completo estado de rebelião do homem natural contra o seu Criador.

Abordando os Cânones de Dort

A partir daqui passaremos a ler o que diz o texto de Dort de forma que possamos comentá-lo de forma breve. É importante ressaltar que não se trata de uma análise exaustiva, mas suscinta, na intenção de facilitar a aplicação do conhecimento.

Por uma questão de adequação e didática, serão abordados somente 6 dos 18 artigos desse capítulo.

CAPÍTULO 1

A DIVINA ELEIÇÃO E REPROVAÇÃO

Art.1. Todos os homens pecaram em Adão, estão debaixo da maldição de Deus e são condenados à morte eterna. Por isso Deus não teria feito injustiça a ninguém se Ele tivesse resolvido deixar toda a raça humana no pecado e sob a maldição e condená-la por causa do seu pecado, de acordo com estas palavras do apóstolo: "... para que se cale toda boca, e todo o mundo seja culpável perante Deus... pois todos pecaram e carecem da glória de Deus...", e:"...o salário do pecado é a morte..." (Rom. 3:19,23; 6:23).

Art.2. Mas "Nisto se manifestou o amor de Deus em nós, em haver Deus enviado o seu Filho unigênito ao mundo...", "...para que todo o que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna." (I Jo 4:9; Jo 3:16).

Art.3. Para que os homens sejam conduzidos à fé, Deus envia, em sua misericórdia, mensageiros desta mensagem muito alegre a quem e quando Ele quer. Pelo ministério deles, os homens são chamados ao arrependimento e à fé no Cristo crucificado. Porque "...como crerão naquele de quem nada ouviram? e como ouvirão, se não há quem pregue? E como pregarão se não forem enviados?..." (Rom. 10:14, 15).

Art.4. A ira de Deus permanece sobre aqueles que não crêem neste Evangelho. Mas aqueles que o aceitam e abraçam Jesus, o Salvador, com uma fé verdadeira e viva, são redimidos por Ele da ira de Deus e da perdição, e presenteados com a vida eterna (Jo 3:36; Mc 16:16).

Art.5. Em Deus não está, de forma alguma, a causa ou culpa desta incredulidade. O homem tem a culpa dela, tal como de todos os demais pecados. Mas a fé em Jesus Cristo e também a salvação por meio dEle são dons gratuitos de Deus, como está escrito: "Porque pela graça sois salvos, mediante a fé; e isto não vem de vós, é dom de Deus..." (Ef 2:8). Semelhantemente, "Porque vos foi concedida a graça de..." crer em Cristo (Fp 1:29). 

Disso então, decorre que a fé é um dom gratuito de Deus, que opera sobre a vida de criaturas pecadoras, de maneira que lhes possibilita olharem para Jesus como Único e Suficiente Senhor e  Salvador. Os incrédulos, por outro lado, permanecem naquilo que já é natural do homem pecador, que é a rebeldia contra o Criador e completa impiedade oriunda do próprio pecado. Dessa forma, Deus não é culpado pela incredulidade, e sim o homem pecador, pois ela é natural dele.

Dessa formar, aqueles que impõe a Deus culpa pela reprovação dos ímpios, na verdade, O culpam por uma responsabilidade que é do homem pecador, e não do Criador. Note que a incredulidade é uma faceta do fruto do pecado, e por isso consiste em uma herança carnal, da qual o Senhor jamais poderia ser culpado.

Art.6. Deus dá nesta vida a fé a alguns enquanto não dá a fé a outros. Isto procede do eterno decreto de Deus. Porque as Escrituras dizem que Ele "...faz estas cousas conhecidas desde séculos." e que Ele "faz todas as cousas conforme o conselho da sua vontade..." (Atos 15:18; Ef 1:11). De acordo com este decreto, Ele graciosamente quebranta os corações dos eleitos, por duros que sejam, e os inclina a crer. Pelo mesmo decreto, entretanto, segundo seu justo juízo, Ele deixa os não-eleitos em sua própria maldade e dureza (Êxodo 7:3 - “Eu, porém, endurecerei o coração de Faraó, e multiplicarei na terra do Egito os meus sinais e as minhas maravilhas”). E aqui especialmente nos é manifesta a profunda, misericordiosa e ao mesmo tempo justa distinção entre os homens que estão na mesma condição de perdição. Este é o decreto da eleição e reprovação revelado na Palavra de Deus. Ainda que os homens perversos, impuros e instáveis o deturpem, para sua própria perdição, ele dá um inexprimível conforto para as pessoas santas e tementes a Deus.

É claro que, quando afirmamos que há injustiça da parte de Deus em eleger alguns e reprovar outros, o fazemos investidos de um certo humanismo. Há nesse tipo de pensamento a ideia de que o homem não é tão mal assim, e que por isso, não seria justo que Deus deixasse tantos se perderem em sua própria incredulidade. Porém, quando voltamos ao texto de Romanos, fica claro que a Lei do Senhor encerrou todas as criaturas humanas debaixo da mesma transgressão, demonstrando que toda e qualquer salvação operada por Deus é por mera graça de Sua parte. O Salmo 14 reforça essa constatação suscitada pela Lei, quando nos diz que "O Senhor olhou desde os céus para os filhos dos homens, para ver se havia algum que tivesse entendimento e buscasse a Deus. Desviaram-se todos e juntamente se fizeram imundos: não há quem faça o bem, não há sequer um" (Sl 14:2,3).

Sendo assim, compreendermos que Deus elege e reprova tomando por base o Santo Conselho de Sua vontade é também afirmar que Ele age de forma graciosa, sabendo que ninguém merecia gozar de Sua presença eternamente. Ainda que Ele salvasse apenas um único ser humano, ainda assim seria graça de Sua parte, e por isso já seria digno de louvor.

Refutação Contra Erro Comum Apresentado em Oposição à Doutrina da Eleição e Reprovação

Erro: Se a Bíblia ensina que é desejo de Deus que todos os homens sejam salvos e que cheguem ao pleno conhecimento da verdade (1 Tm 2:3,4), então é um equívoco considerarmos que Deus elege dentre os pecadores apenas alguns para a salvação.

Refutação: O erro começa pela falta de contexto adequado ao texto destacado. Quando lemos desde o verso 1, veremos que Paulo instrui o jovem Timóteo quanto à oração e súplicas por “todos os homens”. Mas é claro que aqui o texto não trata “todos os homens” quantitativamente, e sim qualitativamente.

A expressão grega usada para “todos” é “pãs”, que pode ter dois significados: 1. Individualmente - cada, algum, tudo, todo (Ex: Mt 1:17); 2. Coletivamente - “algo de todos os tipos” (Ex: Mt 3:5). A ideia do apóstolo Paulo é que os cristãos orem por “todos os homens” sem distinção entre eles, ou seja, assim como se deve orar pelos pobres e necessitados, temos também o dever de orar “pelos reis, e por todos que exercem autoridade” (v.2). Não fosse isso, teríamos diante de nós uma missão impossível de ser cumprida; afinal, com a humanidade passando da casa dos 7 bilhões de habitantes, como poderíamos orar por todas as pessoas, pensando em termos quantitativos? É muito claro que o sentido aqui é o segundo abordado no exemplo, de "algo de todos os tipos".

Dessa forma, claramente o texto aponta para o desejo de Deus arrebanhar os eleitos dentre todas as qualidades de pessoas, sejam elas ricas ou pobres, governantes ou governados, patrões ou empregados; é desejo do Senhor que todos, indistintamente, sejam salvos, dentre todos os tipos de pessoas, chegando ao pleno conhecimento da verdade acerca do pecado, da justiça e do juízo, bem como da salvação ofertada por meio de Cristo Jesus.

Implicações Práticas à Vida

É claro que não podemos olhar para essa doutrina sem tirarmos aplicações diretas para nossas vidas. Há muito que se aprender e praticar aqui, por isso, faço questão de compartilhar três implicações práticas à todo crente à luz dessa doutrina.

1.Devoção mais fervorosa - Todos os crentes que se debruçam sobre esse tema devem ser conduzidos a uma devoção ainda mais fervorosa, pois diante da realidade da perdição, ser achado alvo da misericórdia em lugar do juízo é motivo de alegria eterna no Senhor;

2.Humildade, e não soberba - Todos que se deparam com a triste realidade do pecado, que veem a miséria da natureza humana que habita em nós, mas que receberam graciosamente a salvação por Jesus Cristo, não devem olhar para si mesmos com altivez, mas com humildade, sabendo que os méritos na salvação não são nossos, mas do nosso Senhor;

3.Chamado a missões e evangelismo - Ao contrário do que muitos pensam, equivocamente, a doutrina da Eleição e Reprovação não milita contra a ordenança do Senhor à Sua Igreja, para que esta vá e pregue o evangelho da salvação, fazendo discípulos e batizando-os. Pelo contrário, os Batistas sempre foram missionários! Justamente por não sabermos quem são os eleitos de Deus é que devemos pregar o evangelho com ainda mais afinco e compromisso.

Que o Senhor nos ajude, e tenha misericórdia de nós.

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