O EVANGELHO, A IGREJA E A PÓS-MODERNIDADE

Como dizes: Rico sou, e estou enriquecido, e de nada tenho falta; e não sabes que és um desgraçado, e miserável, e pobre, e cego, e nu [...] 
Apocalipse 3:17


Por Rubem Amorese, Prefácio do livro Icabode, Editora Ultimato

Em toda a sua história, o Cristianismo sempre soube, bem ou mal, reconhecer, enfrentar e combater seus inimigos. Fossem eles teólogos, com suas heresias e desvios doutrinários; impérios, com seus reis e exércitos; ou mesmo demônios, com seus ataques sutis e enganosos, os cristãos sempre souberam discerni-los e reagir de forma a preservar a vocação da Igreja e sua aliança com o Criador. Discerni-los não era tarefa muito difícil, à exceção de algumas heresias que trouxeram, por certo tempo, confusão e divisão.

Mas, mesmo sendo ameaçado com torturas e perseguições, todos os inimigos do Cristianismo foram enfrentados com coragem e fé, e contribuíram direta ou indiretamente para o crescimento e fortalecimento da Igreja de Cristo, tanto na sua fé como na sua vocação.
Em nossa história mais recente vemos que o conflito deu-se basicamente no campo da dogmática. O liberalismo teológico do início do século XX foi, e continua sendo, o grande vilão que ameaça a integridade da fé evangélica, levantando dúvidas quanto às doutrinas básicas do Cristianismo. A reação a esse "inimigo" foi o movimento fundamentalista que, a princípio, buscou resgatar e preservar os princípios fundamentais da fé cristã, mas que acabou sendo absorvido por outros valores ideológicos e teológicos, transformando-se ele mesmo numa outra ameaça. Atualmente, vivemos a redescoberta da "guerra espiritual", com forte ênfase nos "principados" e "potestades", que atuam no mundo espiritual, cujo combate também se dá com as armas do Espírito. Essa guerra de natureza mais metafísica tem dominado quase todo o cenário dos conflitos da Igreja Evangélica nos últimos anos.
No entanto, hoje a Igreja se vê diante de uma nova realidade, que a ameaça e traz uma característica muito peculiar e incomum: não se trata de um inimigo. Pelo menos não no sentido em que os outros mostraram-se na história. A bem da verdade, trata-se mais de um aliado que oferece inúmeros recursos considerados imprescindíveis para o avanço do evangelho do que uma ameaça à fé e missão da Igreja. Mas é exatamente aqui que mora o perigo. Ao mostrar-se como um aliado inofensivo, aceito e admirado por todos, que cria uma atmosfera de possibilidades e realizações, tira da Igreja a capacidade de discernir o que realmente está acontecendo à sua volta. E, sem que ela perceba, vai devagar minando suas bases até comprometer sua identidade.
Estamos falando da modernidade. Obviamente, não se trata de nenhum inimigo ideológico nem teológico, nem mesmo de um inimigo. É apenas a realidade constatada no chamado mundo civilizado. Ela está aí, admirada por todos, contribuindo com o que de melhor o homem pode experimentar. Mas, paradoxalmente, ela traz também a maior ameaça [senão, uma das maiores] e o maior desafio que o Cristianismo jamais experimentou. Refletir sobre a modernidade e seus desdobramentos sobre a fé e a missão da Igreja é a grande tarefa que temos pela frente.
A ameaça que a modernidade traz não se encontra no campo da teologia dogmática, das formulações doutrinárias nem das confissões de fé da Igreja. Nada disso se encontra ameaçado de deformação ou extinção. Nem mesmo se trata de uma ameaça maligna, de um ataque satânico que poderia ser exorcizado mediante a "oração de guerra", livrando a Igreja de uma crise sem precedentes. Também não se trata de nenhuma conspiração idealizada por estruturas políticas contrárias aos valores do Reino de Deus. Trata-se mais de uma ameaça à natureza própria da Igreja, ao significado de ser Igreja. Na verdade, o desafio que temos pela frente em relação à modernidade não é o de lutar pelas doutrinas evangélicas nem pela moral religiosa (embora continuem sendo temas importantes), mas o de preservar o propósito original da aliança de Deus com o seu povo, de conseguir simplesmente ser Igreja.
Quando olhamos para a realidade protestante da Europa pós-moderna, continente que foi o berço do protestantismo, percebemos a força devastadora da modernidade sobre a fé e a Igreja. Aquilo que imperadores com seus exércitos ou mesmo homens com suas heresias não conseguiram ao longo destes quase dois mil anos de Cristianismo, a modernidade [ou pós-modernidade] conseguiu sem grandes esforços. Para nós, brasileiros, que experimentamos um momento de grande entusiasmo e crescimento evangélico, pode parecer pura especulação de mau gosto tratar deste tema como uma ameça a uma Igreja que nunca esteve tão sólida e segura da sua vocação. Talvez valesse a pena relembrar aqui as palavras do Senhor Jesus à Igreja de Laodicéia: "Pois dizes: Estou rico e abastado, e não preciso de coisa alguma, e nem sabes que tu és infeliz, sim, miserável, pobre, cego e nu" (Apocalipse 3.17). A modernidade cega, empobrece e descaracteriza a Igreja.